Blog sobre São Gonçalo. Rio de Janeiro.

Fazenda Jacaré . Fonte: Acervo MEMOR-SG                                                                                    *Jorge Ce...

História Gonçalense: A Fazenda Jacaré

Fazenda Jacaré . Fonte: Acervo MEMOR-SG
                                                    


                              *Jorge Cesar Pereira Nunes

            Não havendo sido encontrados registros imobiliários de que a Fazenda Jacaré pertenceu ao Barão de São Gonçalo, nem tendo Pedro II relatado em seu diário, editado pelo Museu Imperial, uma hipotética visita a ela em 1854, ano em que esteve na Fazenda Engenho Novo do Retiro, do citado barão, e de que o Imperador dá razoável descrição, começo a citar a Fazenda (ou sítio) do Jacaré com sua aquisição, em 1809, por William Harvey – homônimo do cientista inglês (1578/1657) que, pioneiro, descreveu os detalhes do sistema circulatório humano em publicação de 1628 –, que chegara ao Brasil no ano anterior, na comitiva do príncipe regente Dom João, depois Dom João VI.

            Da comitiva também fazia parte o conde francês Beaurepaire Rohan (saiba mais) , que adquiriu terras em Sete Pontes e ali construiu um palacete, mas o inglês preferiu investir na hoje chamada Via Porto Velho, comprando a fazenda onde construiria uma casa grande singular para a região, porque nos moldes britânicos. O sonho agrícola de Harvey durou pouco: não era de sua natureza dedicar-se ao amanho da terra, razão pela qual ele dividiu a fazenda em sítios e os vendeu ou arrendou a terceiros. Pegou o dinheiro e fez o que sabia: montou a firma Harvey & Comp, na Rua dos Pescadores, no centro do Rio, e dedicou-se ao comércio de importação e exportação por vários anos.

            Foi em um desses sítios, no Campo dos Frades (cuja memória hoje é mantida pela Rua dos Frades, embora não houvesse frade nenhum na área, mas um poço com construção protetora ao estilo jesuítico, daí resultando o uso popular da denominação), que nasceu Manoel Antônio da Costa, em 16 de maio de 1832. Em outro sítio residiu o médico Manuel Vieira da Fonseca, natural de Maricá, que ali morou em seus últimos anos de vida, até a morte, ocorrida em seis de abril de 1911. Há homônimos de ambos denominando escolas municipais em André da Rocha (RS) e em Búzios (RJ), mas por aqui são eles quase completamente esquecidos, não fossem suas sepulturas no Cemitério de São Gonçalo. E, em um terceiro sítio, nasceu o professor Armando Rodrigues Gonçalves.

            Manuel Vieira da Fonseca nasceu em Maricá, RJ, em 1832, formou-se pela Faculdade Nacional de Medicina em 1855 e começou a clinicar em Saquarema e Araruama, tendo sido médico da Câmara Municipal nesta última cidade. Porém, decidiu mudar-se para Niterói e foi nomeado subdiretor do Hospital Municipal São João Batista, em 1878. Dois anos antes havia sido eleito vereador à Câmara Municipal da então capital da província e empossado em 10 de janeiro de 1877. Sua carreira política prosseguiu elegendo-se deputado provincial em 1880, 1882 e 1884. Havendo pertencido ao Conselho Provincial de Instrução Pública, presidiu as comissões eleitorais de São Gonçalo para a eleição provincial de 1878 e para o pleito à Câmara de Niterói em primeiro de julho de 1880. Em maio de 1888, Vieira da Fonseca transferiu-se para Macaé, onde liderou com o futuro governador Alfredo Backer a campanha republicana. Em 1890, foi superintendente de ensino, intendente municipal e presidente (equivalente a prefeito, na época) da Intendência de Macaé. Eleito senador estadual em 1891, perdeu o mandato meses depois, com a deposição do governador Francisco Portela e a extinção daquela Câmara legislativa. Em 1892, retornou a Niterói e no começo do século XX instalou-se em um sítio da localidade de Jacaré, onde faleceu em seis de abril de 1911. Vieira da Fonseca publicou o “Manual do banhista ou estudos sobre os banhos de mar”, em 1876, e “Estudo sobre a água potável e econômica, com aplicação à capital da Província do Rio de Janeiro”, em 1881.

            Já Manuel Antônio da Costa nasceu no próprio sítio, filho do médico Luiz Antônio da Costa e de Sebastiana Rosa da Costa, em 16 de maio de 1832. Formado na Faculdade Nacional de Medicina, pela turma de 1858, instalou seu consultório em março de 1859 no sítio em que nascera e deu prioridade ao atendimento gratuito dos pobres, o que o levou a ser nomeado, em 1880, médico da Câmara Municipal de Niterói em São Gonçalo (então distrito da capital provincial), por proposta do presidente do Legislativo, o também médico Paulo César de Andrade, “pelo fato de socorrer há muitos anos a pobreza e ser muito estimado por sua população”, conforme justificou. Em primeiro de fevereiro de 1884 foi nomeado presidente da comissão sanitária provincial em São Gonçalo e em seu aniversário, no mesmo ano, foi presenteado pelo povo com um tílburi e uma parelha de bestas (presente que equivaleria hoje a um automóvel). Em 1888, atendia aos pobres, gratuitamente, às quintas-feiras, na Sociedade Beneficente São Gonçalense. Manuel Antônio da Costa, emancipado o município de São Gonçalo, foi nomeado membro do Conselho de Intendência, tomou posse em dois de janeiro de 1892 e dele fez parte até sua extinção, em maio seguinte. Eleito vereador em 25 de fevereiro de 1898, tomou posse a nove de março, mas renunciou ao mandato em 21 de julho do mesmo ano, por haver sido nomeado delegado da Assistência Pública estadual em São Gonçalo. Em 1901, com a epidemia de varíola grassando em Tribobó, ali comprou uma casa, com amigos, e instalou um hospital provisório. Em 1904, voltou a ser eleito vereador, mas se recusou a tomar posse. Devido a seu estado de saúde (paralítico, continuou clinicando para os pobres), mudou-se para Neves e ali faleceu, de arterioesclerose, aos 78 anos de idade, três meses após, em três de setembro de 1909. Sepultado no antigo Cemitério da Confraria do Santíssimo Sacramento, hoje parte integrante do Cemitério de São Gonçalo, somente anos depois recebeu uma homenagem condigna, por iniciativa do então vereador Alonso Faria, que autorizou a Prefeitura a construir um mausoléu no que era até então uma cova rasa, obra só realizada em 1926.

            Filho de José Rodrigues Gonçalves e Rosa de Oliveira Gonçalves, Armando (Rodrigues) Gonçalves nasceu em sítio no Campo dos Frades, que integrara os domínios da Fazenda Jacaré, em dois de maio de 1883. Professor, advogado, jornalista, poeta, escritor e ocupante dos mais variados cargos públicos no Estado, Armando destacou-se por aqui ao dirigir o jornal “O Município”, em 1912, depois de, no ano anterior, haver feito reviver o carnaval de rua na cidade, com a criação do Bloco Carnavalesco Mensageiros do Amor, composto na maioria por crianças, e cujos três carros alegóricos, por ele mesmo confeccionados, desfilaram entre o Porto Velho e a sede do Município, criando um novo hábito naquele festejo popular. Além de ter sido superintendente de ensino de São Gonçalo (hoje, secretário municipal de Educação) de 1915 a 1919, foi um dos fundadores da Academia Fluminense de Letras, diretor da Escola Normal de Niterói, diretor de escolas particulares e autor de diversos livros, o principal dos quais (Colar de Pérolas) era uma coletânea dos melhores poemas fluminenses da época. Armando Gonçalves faleceu em Niterói em 22 de agosto de 1962 e é patrono de colégio estadual no bairro Salgueiro, em São Gonçalo, e de travessa no bairro Santa Rosa, em Niterói.

            Voltemos a William Harvey: negociante de sucesso no Rio de Janeiro, casara e tivera um casal de filhos. Porém, adoeceu no princípio de 1827 e, em busca de atenção médica, embarcou para o Porto (Portugal) no início de abril daquele ano, com a mulher e uma filha, aqui deixando apenas o recém-nascido William George Harvey. Da cidade portuguesa foi para a Inglaterra, onde faleceu pouco depois, deixando testamento que viria a gerar causas judiciais anos após; ele destinara todos os seus bens no Brasil a seu testamenteiro, mas com isso não concordava o tutor do menino William, no Rio de Janeiro, que resolveu recorrer ao Tribunal do Comércio para anular o ato lavrado em Londres. Em sessão do dia 16 de dezembro de 1838, a corte decidiu tornar nulo o processo, pois continuava em vigor o tratado internacional pelo qual o Brasil reconhecia e respeitava as decisões inglesas tomadas de acordo com a lei britânica, como era o caso do testamento de Harvey pai.

            William George, o filho, chegou à maioridade e tornou-se hábil leiloeiro, tanto no Rio quanto em Petrópolis, com o nome aportuguesado de Guilherme G. Harvey, e não se deu por satisfeito com a decisão judicial de sua infância. Tentou novamente reaver os bens do pai para si, como descendente e herdeiro direto. Nascido em 1827, pouco antes de Harvey pai haver viajado para a Europa, Harvey filho começou a luta na justiça ao chegar aos 21 anos, isto é, em 1848, mas não conseguiu seu intento. Enquanto isso, os proprietários de sítios desmembrados da antiga fazenda e até mesmo a casa grande e seu entorno, agora conhecidos como “fazendinha do Jacaré”, continuavam a ser negociados. Com a morosidade da Justiça brasileira, já desde o Império, o desapontamento de Harvey filho ocorreu em 1859, em 29 de março, quando a propriedade, comprada por Antônio José Domingos Ferreira, foi levada a leilão no rol dos bens de sua falência. Harvey filho chegou a protestar, mediante aviso publicado no Correio Mercantil, de 23 de março de 1860, mas só conseguiu adiar o leilão para 11 de abril de 1862 (em 21 de outubro seguinte, aos 35 anos de idade, William George Harvey viria a falecer em plena rua, de aneurisma da aorta abdominal, e foi sepultado no dia seguinte no Cemitério dos Ingleses, na Gamboa, Rio, e seu testamenteiro, João Crisóstomo Monteiro, não incluiu a Fazenda Jacaré na relação de seus bens), quando a terça parte da fazenda foi adquirida pela casa bancária Gomes & Filhos, que também faliria dois anos depois. Os dois terços restantes ficaram com a Companhia Ferro-Carril Niteroiense, que ali recolhia farto e bom capim para o alimento de seus animais que faziam a tração dos bondes em Niterói. Em 1876, a empresa vendeu a já chamada “chácara do Jacaré” a dona Ana Maria da Conceição Queiroz, que também era dona da Fazenda Boa Vista, e ela chegou a conseguir um bom ganho, quando a província, em agosto de 1888, alugou-lhe as terras para pasto de animais do Corpo Policial (atual Polícia Militar). O aproveitamento foi por curto tempo, porque dona Ana Maria morreu no princípio de 1890, e seu filho e inventariante, Luiz Manoel Pinto Neto, colocou tudo à venda.

            Um grupo de empresários comprou a chácara e lá constituiu a Companhia Cooperativa Industrial, com uma fábrica de sabão e velas e uma fábrica de cerveja pelo sistema bávaro. A empresa, entretanto, não foi pra frente e acabou sendo liquidada pelos sócios, que a levaram a leilão em 4 de junho de 1895, com anúncio não só das duas indústrias como de palacete com três pavimentos (que, em realidade, eram dois), casas para empregados, cocheira e tudo com muro de pedra.

A região continuava crescendo populacionalmente, a ponto de, em 1890, o empresário Paulo José Leroux conseguir do governo do estado a melhoria da estrada entre o Porto da Madama e o Jacaré (hoje, Rua Visconde de Itaúna), além da construção de ponte sobre o Rio Maribondo. Em 1897, ali foi criado, em 24 de outubro, o Grupo Carnavalesco Filhos do Jacaré, presidido por Jônatas Bertoldo, e no dia 7 de setembro de 1903 foi instituída a Loja Maçônica Evolução, conforme registros da Gazeta de Notícias, de 4 do mesmo mês, e de O Fluminense, de 8 seguinte, mas que a Maçonaria não confirma. Em 1908, a casa grande da chácara Jacaré serviu de hospital, durante a epidemia de varíola, e em 1910 foi criada a primeira escola estadual do já bairro do Jacaré (e que depois virou Patronato-Paraíso).

A esta altura dos acontecimentos, a chácara já pertencia ao coronel José Ferreira de Aguiar, que a vendeu ao governo do Estado em 1912, em 10 de abril, para nela ser instalada uma colônia de alienados. Como não havia o dinheiro no orçamento estadual, em 10 de maio seguinte foi aberto crédito especial no valor de 16.300$000 para o pagamento da compra efetuada no mês anterior, ao mesmo tempo em que era iniciada vigorosa campanha contra o fim destinado ao imóvel, que acabou por não ter sua finalidade concretizada. Somente em 1915, por lei foi autorizada sua doação para a criação de colégio agrícola e em 1916 foi feita a escritura de doação modal (em caso de perda da finalidade, o bem retornaria ao Estado) em favor do Patronato de Menores Abandonados do Estado do Rio de Janeiro.  Mas, aí começa outra história, a daquele Patronato.


Fontes: Tribunal do Comércio do Rio de Janeiro, sessão de 16-12-1838.
              Ata da sessão da Câmara Municipal de Niterói, de 19-11-1857.
              Ofício do presidente da província, José Francisco da Silveira Motta, de 31-05-1859.
                Livro nº 1, de reuniões do Conselho Municipal da Intendência, sessão de 02-01-1892, p. 31 verso e 32.
              Inventário de Ana Maria da Conceição Queiroz, de 12-10-1890.
              Mensagem do presidente (governador) Oliveira Botelho, de 01-08-1913.
              Mensagem do presidente (governador) Geraque Collet, de 01-08-1918, p. 31.    
                Cartório do Registro Civil de São Gonçalo, livro de óbitos nº 10, p. 92 verso, registro nº 350, de óbito do Dr. Manoel Antônio da Costa.
                Cartório do Registro Civil de São Gonçalo, livro de óbitos nº 11, p. 128, registro nº 151, de óbito do Dr. Manoel Vieira da Fonseca.
               Campa da sepultura do médico Manuel Antônio da Costa na quadra 3 do Cemitério de São Gonçalo.
               Indicador de Contratos, Termos e Escrituras Públicas relativos ao período de 01/01/1890 a 31/12/1919, de Desidério Luiz de Oliveira Júnior, p. 180 e 181, Tipografia do Jornal do Comércio, 1920.
                Figuras & Fatos da Medicina, de Emmanuel de Macedo Soares, verbetes de Manuel Vieira da Fonseca e Manuel Antônio da Costa.
                As Ruas Contam Seus Nomes, de Emmanuel de Macedo Soares, p. 122 e 123.
                São Gonçalo Cinquentenário, de Luiz Palmier, p. 192, Gráfica do IBGE, 1940.
                Almanaque Laemmert para 1881, província, p. 30, e para 1885, província, p. 983 e 1003.
                Diário Fluminense, 03-04-1827, p. 301.
                A Verdade, 17-03-1832, p. 3.
                 Diário do Rio de Janeiro, 27-09-1826, p. 3 (ou 87); 11-05-1829, p. 4; 04-07-1832, p. 4; e 08-12-1858, p. 1.
                A Pátria, 16-12-1838, p. 2; e 13-03-1859, p. 4.
                 Correio Mercantil, 09-02-1858, p. 3; 29-03-1859, p. 3; 26-01-1860, p. 2; 11-04, p. 4, e 22-10-1862, p. 1; 17-10-1864, p. 3.
                Jornal do Comércio, 22-10, p. 1, e 24-10-1862, p. 2.
             O Globo, 14-02-1876, p. 4; 10-03-1876, p. 4.
                 O Fluminense, 01-02, p. 1 e 2, 10-09, p. 4, e 12-12-1884, p. 3; 03-08-1888, p. 3; 19-03, p. 2, e 12-10-1890, p. 3; 11-05-1895, p. 3; 29-10-1897, p. 2; 08-09-1903, p. 2; 25-08-1908, p. 1; 07-04-1911, p. 1; 20-10-1912, p. 1.
               Revista de Engenharia, 28-03-1890, p. 63.
               Jornal do Brasil, 19-05-1895, p. 6.
               Gazeta de Notícias, 03-06-1895, p. 3; 04-09-1903, p. 3; e 29-12-1910, p. 3.

                 Archivo Vermelho, 16 a 30-04-1918, p. 1.



Sobre o Autor:

Jorge Nunes Pereira Nunes
Jorge Cesar Pereira Nunes. Desde sua juventude é ativista político em São Gonçalo e trabalhou diretamente com três prefeitos – Osmar Leitão Rosa, José Alves Barboza e Hairson Monteiro dos Santos. Graduado em Direito pela UFF. Jornalista e pesquisador em História de São Gonçalo. Autor dos livros: “A criação de municípios no Estado do Rio de Janeiro” (1992), “Chefes de Executivo e Vice-Prefeitos de São Gonçalo” (2009), "Dirigentes Gonçalense - Perfis" (2012) ,“Os nossos símbolos cívicos e a saúde Pública 1820-1940 in: São Gonçalo em Perspectiva” (2013). Endereço eletrônico: jorgecpn6@hotmail.com. Boa Leitura.

Um comentário:

  1. Muito interessante seu artigo. è importante divulgar a história de nosso município.

    ResponderExcluir

Seu comentário é muito importante, pois estimula novas postagens

Sugestões

Compartilhe no WordPress, Blogger...

Copyleft

Copyleft
O conteúdo do blog Tafulhar é “Copyleft”, podendo ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor e, se for o caso, à fonte primária da informação

Creative Commons

Licença Creative Commons
O Site Tafulhar de Wilson Santos de Vasconcelos foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada.
Com base no trabalho disponível em https://www.tafulhar.com.br.